Direito do Consumidor resiste ao desmonte do padrão civilizatório
- procedeconsumidor
- 4 de jun. de 2024
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O Direito do Consumidor é um Direito de resistência! A assertiva parece óbvia para muitos, nem tanto para outros e, talvez, absurda para setores remanescentes da sociedade brasileira. O óbvio, contudo, precisa ser entoado, ainda mais em tempos nos quais a melhor hermenêutica parece sujeitar-se à simpatia desta ou daquela matriz teórica, tendo que se adequar às imposições trazidas por modelos que predam o Direito e oferecem soluções que escapam à normatividade jurídica e ao correlato dever de accountability.
Aliás, não é demais resgatar aqui outra questão que ulula: os intérpretes não são livres para decidirem como entendem. Mas esse não é o mote deste texto e por isso retoma-se o argumento principal: como sobram teorias e faltam discussões quando se tem em mente aspectos basilares do Direito do Consumidor brasileiro.
O que se quer comunicar e problematizar, anote-se aqui, não são as questões contemporâneas alimentadas pelo incontrolável avanço da inteligência artificial ou de outras tecnologias correlatas, são problemas de piso há muito conhecidos pela legislação pátria e desde sempre atacados — quase sempre, intencionalmente — na tentativa de obnubilar escolhas incontestáveis, soluções inequívocas e, por que não, eleições insuspeitas insculpidas no artigo 5°, XXXII da Constituição de 1988.
A questão a ser novamente desatada tem relação com a construção de presunções e raciocínios que não resistem a qualquer análise minimamente apurada, em especial, por abusarem da subjetividade da pena usada em sua redação e servir como ferramenta que procura desconstruir o padrão civilizatório normativamente idealizado quando da edificação tanto da citada Constituição como da Lei que buscando garantir-lhe a maior concretude possível: o Código de Defesa do Consumidor.
Um exemplo sempre atual das preocupações envoltas por estas linhas se refere às expressões comumente utilizadas na tentativa de refutar a ocorrência de violação de direitos de personalidade e, como consequência possível — embora, não a única —, a de danos extrapatrimoniais passíveis de reparação: o mero aborrecimento e, no limite, a suposta existência de uma indústria do dano moral não passam de narrativas elaboradas na tentativa de solapar os alicerces de referido padrão civilizatório pensado no âmbito do projeto normativo de sociedade desenhado em 1988.
A proteção à pessoa humana é um dos alicerces da Constituição de 1988 e, assim, um dos pontos de sustentação do Estado Democrático de Direito. Dignidade humana, solidariedade social e igualmente substancial são pautas normativas mínimas a partir das quais os agentes econômicos, a sociedade civil, o Estado e, é claro, cada pessoa deverão pautar seus comportamentos, decisões e escolhas. O óbvio precisa ser novamente dito.
Notadamente em relação ao fomento à normatividade concreta que emana de referidos princípios constitucionais, quando se analisa o tema a partir da perspectiva do Direito do Consumidor, normalmente se confere grande destaque à previsão contida no retrocitado inciso XXI do artigo 5º, porém, exatamente no que se refere à ordem econômica, nem sempre o caput do artigo 170 é levado em consideração nas discussões sobre Direito do Consumidor, que costuma ser olvidado quando o sistema econômico capitalista é identificado em movimento e revela seu leitmotiv.
É preciso lembrar, contudo, que as relações econômicas no Brasil e, por decorrência lógica, as relações de consumo, estão sujeitas à orientação normativamente instituída pela Ordem Constitucional de 1988 e, com efeito, todo e qualquer comportamento comercial praticado em um sistema de mercados deve ser igualmente analisado pelo prisma que baliza a finalidade da Ordem Econômica Brasileira.
Essa reflexão, porém, é por vezes esquecida, intencionalmente encoberta quando das discussões envolvendo ameaças e lesões a direitos dos consumidores, em especial, quando o argumento usado se lastreia na necessidade de limitar as hipóteses geradoras de danos extrapatrimoniais, sugerindo a criação de mecanismos que impeçam a proliferação de demandas banais que não merecem a atenção do Judiciário ou não justificam os custos econômicos envolvidos.
Preservação do padrão de dignidade
É preciso atentar, todavia, ao fato de que o sistema de mercados, enquanto componente da econômica nacional, sujeita-se ao mesmo vetor finalístico que orienta a ordem econômica constitucional. E essa, por sua vez, não está vinculada à racionalidade que informa o sistema econômico capitalista, tampouco à ideia de liberdade econômica, afinal, sujeita-se a preocupações com dimensão social, pois, com efeito, a finalidade precípua da ordem econômica consiste na manutenção do padrão de dignidade que deve ser assegurado a cada pessoa inserida nesse fluxo de contratos, escolhas e práticas comerciais, uma afirmação que não se baseia em preferências sobre a teoria que mais nos agrada, mas decorre de expressa disposição pinçada no texto constitucional.
A preservação do padrão de dignidade na relação entre fornecedores e consumidores é, portanto, um imperativo constitucional e, por isso, não é possível dissociar os comportamentos comerciais praticados pelos fornecedores no mercado de consumo nacional do impacto que eles causam sobre os consumidores, pouco importando o tamanho da lesão, afinal, todo comportamento comercial deve ser compreendido como passível de avaliação no que se refere ao impacto causado sobre direitos dos consumidores.
Violação ao direito de personalidade e a quebra do padrão civilizatório
Assim, quando a conduta resulta na violação ao direito de personalidade, o resultado é o surgimento do dever de reparar toda vez que haja dano; pouco importando a sua monta ou natureza, pois, as narrativas que refutam essa assertiva, normalmente ignoram — quando não escondem essa constatação — que os danos nas sociedades de consumo são estatisticamente previsíveis e ocorrem em série.
A relação, assim, entre a violação ao direito de personalidade e a quebra do padrão civilizatório é direta, não sendo possível mantê-lo conforme prevê a Constituição quando se perpetua, tolera, normaliza e até mesmo se banaliza a violação ao direito de personalidade, por menor que aparentemente seja a ofensa aos olhos tanto do intérprete como do comentarista.
Como sugerido, a premissa de que absurdos não devem ser tolerados tem sofrido progressivo desgaste, fato que pode ser percebido em teses que buscam desqualificar a lesão ao direito de personalidade por supostamente se tratar de uma inevitável consequência afeta à vida em sociedade, ou então, por não representar evento gerador de grandes comoções ou, ainda, como se isso fosse necessário à caracterização de qualquer lesão de natureza extrapatrimonial, algo ligado a dor no corpo ou n’alma.
Violações banalizadas
Ainda que sem uma base objetiva capaz de estabelecer os parâmetros da sua identificação, posto a sua utilidade ao caso concreto decorrer da subjetividade de quem analisa o conflito de consumo, a utilização da expressão mero aborrecimento tem sido, com isso, cada vez mais frequente para justificar a negativa de danos extrapatrimoniais, alimentando um sistema perverso que se alimenta de danos e desvios de menor monta e deságua, não apenas em (a) danos não reparados em concreto, como potencialmente alimenta a (b) concorrência desleal e, ainda, (c) abaixa a baliza que permite aferir a qualidade dos produtos e serviços, na linha do que escreveu Akerlof — The market for lemons — há, aproximadamente, meio século.
Argumentos dessa ordem têm se apresentado como padrão nas contestações de fornecedores e nas decisões judiciais as quais, diante da alegada ocorrência de uma violação a um direito de personalidade, rotulam como banais e triviais os comportamentos que vilipendiam padrões basilares de respeito, lealdade, atenção e zelo que devem, obrigatoriamente, orientar qualquer relação de consumo.
Muitas das vezes, até mesmo o valor do dano extrapatrimonial postulado é utilizado para afastar a importância de se manter inalterada a utopia de respeito aos direitos dos consumidores, fator que, muito provavelmente, ao lado (a) dos padrões reproduzidos nas petições e alfarrábios judiciais, quase sempre sem preocupações com o fenômeno inflacionário, (b) retroalimenta o recrudescimento do número presente nos pedidos e condenações cotidianas, neste caso, alimentado ainda pelas imposições restritivas carreadas pela legislação processual civil (CPC. artigo 292, V).
Dever de indenizar como ação de resistência
Tais caminhos parecem ignorar que a partir do que prevê a Constituição, o Código de Defesa do Consumidor tem uma manifesta função de intervenção na economia, apresentando balizadores éticos jurídicos do comportamento dos agentes econômicos, limitando práticas comerciais e dispondo sobre um conjunto de direitos que representam o padrão de dignidade a ser garantida dentro do mercado de consumo nacional. E toda vez que esse padrão não é atingido, a conduta deve ser sancionada!
Toda a arquitetura jurídica de proteção dos consumidores encontra-se orientada pelos objetivos Política Nacional das Relações de Consumo e, mais uma vez, em conjunto o respeito à saúde, à segurança, a melhora da qualidade de vida, a harmonia e transparência nas relações de consumo e a proteção dos seus interesses econômicos, a promoção de vidas dignas emerge como parâmetro a ser considerado; inexoravelmente considerado.
Em paralelo ao reconhecimento da dignidade do consumidor como um objetivo da Política Nacional das Relações de Consumo, tem-se o reconhecimento do direito básico à efetiva prevenção e reparação dos danos patrimoniais e morais, individuais, coletivos e difusos.
Mais uma vez, o tema da reparação dos danos morais se apresenta como um importante balizador do padrão de dignidade e respeito que deve ser garantido aos consumidores brasileiros. Sempre que esse padrão for violado, toda vez que a linha civilizatória for ultrapassada, o dever de indenizar é medida que se impõe em vista da efetiva reparação contra a violação aos direitos de personalidade. E assim o é como ação de resistência contra a tentativa de implosão de importantes conquistas sociais.
Desrespeito ao consumidor e a reengenharia das relações de consumo
Repise-se que o respeito aos consumidores é um dos elementos centrais da Política Nacional das Relações de Consumo e que a banalização da violação ao direito de personalidade em nada se aproxima da garantira desse padrão.
Mais uma vez, o óbvio precisa ser dito, o que se mostra ainda mais evidente quando se observa que as narrativas que sugerem quais os dissabores de consumo devem ser tolerados são em grande parte artificialmente instituídos não pela evolução das relações sociais, mas a partir da estratégia dos fornecedores instituírem um padrão que se baseia na violação de direitos básicos dos consumidores.
A banalização da violação de direitos, assim, muitas vezes, é causada pelos próprios fornecedores, que adotam o desrespeito aos consumidores como regra de comportamento e, com isso, estabelecem uma reengenharia das relações de consumo, dando a impressão de que por serem corriqueiros, tais comportamentos não justificam — ou não mais justificam — a imposição do dever de reparar, posto que, assim, a partir dessa artificial transformação social, passam a ser expressão do que supostamente deve ser tolerado na vida em sociedade.
O impacto dessa relativização da proteção em vista dos interesses econômicos envolvidos, ou então, em nome de valores do capitalismo, representa uma marca do que Michel J. Sandel denomina sociedade de mercado, na qual cada aspecto do modo de vida e de interação social é ditado pelos valores de mercado, uma simplificação de algumas das reflexões desenvolvidas por autores do calado de Jean Baudrillard e Gui Debord entre o terceiro e quarto quartos do século 20.
Tudo isso faz pensar donde estariam os principais equívocos em torno da questão que motivou um consumidor a bater às portas do Judiciário para reaver o valor pago em duplicidade por uma aposta — diante da falha do sistema de compensação — e, ainda, haver a devida reparação por ter sido distratado na casa lotérica; reparação essa, consoante o magistrado, fixada em R$ 100 e que ao contrário do que sugere um comentário — leia aqui — sobre o assunto, nada tem de cômico, também por demonstrar como atuando dois dos maiores conhecidos predadores do Direito: as racionalidades econômica e moral.
Uma discussão, aliás, que não pode desprezar a miséria humana e o fato de que “em média, entre apostadores, há maior proporção de homens, brancos, pessoas de referência na família, entre 50 e 64 anos de idade, do meio urbano […] e renda pessoal de até 2 salários-mínimos”, bem como, que “a proporção de pagadores de juros rotativos aumenta de 4% entre não apostadores para 7% entre apostadores, a proporção de consumidores de álcool mais que duplica de 7% para 15% e a proporção de consumidores de tabaco triplica de 3% para 9% na mesma comparação” [1] [2].
No mais, que jamais se olvide que o respeito à dignidade dos consumidores e aos seus direitos de personalidade encontram, no Poder Judiciário, o último baluarte de resistência para a sua efetiva e concreta proteção.
[1] SANDEL, Michel J. O que o dinheiro não compra: os limites morais do mercado. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2012.
[2] CORREA, Charles Henrique. O perfil dos apostadores de loteria no Brasil: análise de box-cox double hurdle model com microdados da POF 2017-2018. Capturado em https://repositorio.enap.gov.br/bitstream/1/5153/1/1A%CC%82%C2%BA%20Lugar%20-%20Charles%20Henrique%20Correa.pdf. Acesso em 06.05.2024.
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